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A revolução financeira e o risco de lavagem de dinheiro sob o novo Marco Legal brasileiro

*Por Luiz Felipe Vieira de Siqueira

A tecnologia tem o poder de transformar — ela pode abrir portas para mais liberdade, autonomia e inovação. Mas também pode servir de escudo para práticas ilícitas. Essa dualidade é visível nos criptoativos, como o Bitcoin, que surgiram com a proposta de descentralizar o sistema financeiro, retirando o domínio de grandes bancos e autoridades estatais. No entanto, como qualquer ferramenta disruptiva, seu uso depende de quem a opera: pode acelerar soluções ou facilitar esquemas fraudulentos bem ocultos.  

Uma revolução financeira e digital

A criação do Bitcoin, em 2008, pelo pseudônimo Satoshi Nakamoto, veio como resposta à crise financeira que abalou o mundo. A ideia era simples e ousada: permitir que qualquer pessoa trocasse valor com outra diretamente, sem precisar de bancos ou instituições intermediárias. Essa proposta se tornou possível graças à tecnologia blockchain, que funciona como um enorme livro público e digital onde todas as transações são registradas e quase impossíveis de serem alteradas.

A blockchain trouxe vantagens reais: segurança, transparência e descentralização. As transações ficam visíveis para todos, mas os nomes dos usuários são substituídos por códigos — garantindo privacidade. Só que essa mesma privacidade virou um grande desafio para governos, autoridades fiscais e policiais: como identificar quem está por trás de uma transação que envolve bilhões, sem rastros claros? 

Criptoativos e lavagem de dinheiro

O anonimato dos criptoativos atraiu não só investidores honestos e entusiastas da tecnologia, mas também criminosos. É possível abrir múltiplas carteiras digitais sem qualquer identificação formal, ocultar transações através de misturadores (mixers) e usar corretoras em países sem regulação rígida. Tudo isso dificulta — e muito — o combate à lavagem de dinheiro, evasão fiscal, financiamento ao terrorismo e outros crimes econômicos. 

Um exemplo emblemático foi a Operação Kryptos, da Polícia Federal, que desmantelou um esquema de pirâmide financeira com criptoativos que movimentou mais de R$ 38 bilhões. E isso tudo aconteceu com uma estrutura descentralizada, sofisticada e longe do olhar das instituições reguladoras. O caso ficou conhecido como do “Faraó dos Bitcoins”. 

O Marco Legal dos criptoativos no Brasil

Para enfrentar os riscos crescentes associados aos criptoativos — como fraudes, lavagem de dinheiro e falta de transparência — o Brasil deu um passo decisivo em 2022 ao aprovar a Lei nº 14.478, conhecida como Marco Legal dos Criptoativos. Esse marco representa uma verdadeira mudança de paradigma na relação entre tecnologia financeira e regulação estatal. 

Com a nova lei, o Banco Central do Brasil passa a exercer o papel central de regulador e fiscalizador do setor, garantindo maior controle sobre as empresas que atuam com ativos digitais. Essas empresas, chamadas de Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs), passaram a ser tratadas legalmente como instituições financeiras — o que amplia a responsabilidade de seus gestores e submete seus serviços a padrões mais exigentes de governança e segurança. 

A lei também inovou ao tipificar o crime de fraude com criptoativos no artigo 171-A do Código Penal, com penas que variam de 4 a 8 anos de reclusão. Isso significa que condutas fraudulentas como esquemas de pirâmide e manipulação de mercado agora têm previsão legal específica e são enquadradas como crimes graves. 

Além disso, as PSAVs devem seguir regras rigorosas de compliance, como a identificação formal de usuários (KYC – Know Your Client), o registro detalhado das operações realizadas e a comunicação de atividades suspeitas ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Essas medidas visam aumentar a transparência e dificultar o uso dos criptoativos para fins ilícitos, sem sufocar a inovação que acompanha essa tecnologia. 

Ou seja, agora o setor tem obrigações legais para funcionar — o que é ótimo para quem quer investir com segurança e pé no chão. 

Mas o desafio continua…

Apesar da lei estar em vigor desde junho de 2023, a regulamentação prática ainda está em processo. O Banco Central abriu consultas públicas, recebeu contribuições da sociedade ainda não publicou todas as regras para que o Marco Legal dos Criptoativos tenha efeitos legais; e quando isso ocorrer ainda terá um prazo de 180 dias para o mercado e os criminosos se adaptarem.  

Enquanto isso, as empresas ainda podem operar sem autorização oficial — o que mantém aberta uma porta para operações sem controle. 

Essa lentidão é preocupante. Sem regras claras, o Brasil corre o risco de se tornar um “paraíso de criptoativos”, onde criminosos lavam dinheiro, fogem da regulação internacional e exploram brechas que outros países já estão fechando. 

O papel das empresas e da inovação

Diante desse cenário de transformação acelerada, profissionais e empresas que atuam nas áreas de tecnologia, inovação, startups e serviços financeiros precisam estar especialmente atentos. O setor de criptoativos está prestes a passar por mudanças significativas, e quem se preparar com antecedência terá uma vantagem estratégica. Não se trata apenas de cumprir regras, mas de construir um ambiente mais confiável e sustentável para inovação. 

A nova realidade exige uma postura proativa: adotar práticas transparentes, com foco na proteção do cliente; incorporar sistemas de compliance e rastreamento eficientes, que atendam às exigências legais e fortaleçam a reputação institucional; manter diálogo contínuo com órgãos reguladores, adaptando modelos de negócios de forma inteligente; e investir em tecnologias de segurança e rastreabilidade, capazes de prevenir riscos e garantir confiabilidade nas transações. Mais do que uma obrigação, esse movimento representa uma oportunidade de liderar um mercado em busca de maturidade e credibilidade. 

A regulação pode parecer um freio, mas ela é o que garante a confiança. Sem ela, o setor inteiro fica vulnerável — e quem perde são os investidores, os consumidores e a inovação honesta. 

Conclusão

Criptoativos são uma das grandes revoluções do nosso tempo. Mas, como toda revolução, precisam de regras para que não se tornem uma ameaça. O Brasil já deu um passo importante com sua nova lei, mas precisa acelerar o processo de regulamentação, fortalecer a supervisão e cooperar com iniciativas internacionais. 

Empresas sérias têm tudo a ganhar com um ambiente regulado, previsível e seguro. E nós, como cidadãos, também — porque inovação sem responsabilidade pode sair caro. 

*Luiz Felipe Vieira de Siqueira é advogado, pesquisador do Think Tank ABES, Doutorando em Inovação & Tecnologia – PPGIT UFMG e sócio da Privacy Point. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.

Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

Artigo publicado originalmente no site IT Forum: https://itforum.com.br/colunas/criptoativos-lavagem-de-dinheiro/

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