Diretrizes integradas para criar um ecossistema digital autônomo, seguro e competitivo globalmente
*Por Darci de Borba e Luiz Felipe Vieira de Siqueira
A soberania digital emerge como um conceito central no contexto brasileiro, referindo-se à capacidade de um Estado em exercer sua autoridade e controle no ambiente digital, proteger seus interesses nacionais e garantir a segurança de seus cidadãos e infraestruturas (Polido, 2024).
No Brasil, o tema começa a ganhar relevância, especialmente diante das discussões sobre regulação de dados, 5G e serviços de nuvem. A literatura destaca ainda a dimensão discursiva e estratégica da soberania digital, não apenas como controle técnico, mas como disputa de poder simbólico e político. Estudos reforçam ainda que o debate vai além da infraestrutura, envolvendo autonomia regulatória e a capacidade de impor normas no ciberespaço.
Este artigo propõe um conjunto de políticas públicas articuladas para fortalecer a resiliência digital do Brasil, com base nas melhores práticas internacionais, legislação pertinente e nos debates contemporâneos.
- Soberania Digital Desafios no Brasil
A soberania digital pode ser entendida como a capacidade de um Estado controlar autonomamente suas infraestruturas digitais, fluxos de dados, serviços críticos e processos de decisão tecnológica. Esse conceito tem ganhado força na União Europeia com iniciativas como o projeto Gaia-X, que visa reduzir dependências externas e assegurar o controle europeu sobre serviços em nuvem.
A soberania de dados e o domínio de infraestruturas de dados são centrais para reforçar as estruturas de cibersegurança. A dimensão transnacional da segurança cibernética e a expansão da IA trazem desafios jurisdicionais. Existe a preocupação com o “colonialismo ou neocolonialismo de dados” e o poder corporativo transnacional que pode submeter governos e populações a padrões tecnológicos invasivos e violadores de direitos fundamentais. As interdependências globais nas cadeias de suprimento tecnológico tornam indispensável a formulação de políticas públicas que conciliem resiliência digital e interesses geopolíticos.
O Brasil enfrenta desafios significativos para manter sua soberania digital, mas também possui um conjunto relevante de capacidades e experiências acumuladas. A construção de uma estratégia nacional robusta, envolvendo Estado, empresas e sociedade civil, é essencial para transformar o país em um ator digital resiliente, autônomo e competitivo globalmente. A seção a seguir reúne algumas sugestões de políticas que podem fortalecer a resiliência brasileira.
- Políticas públicas para fortalecer a resiliência
A construção de uma agenda robusta de soberania digital no Brasil exige o desenho de políticas públicas integradas, capazes de responder aos desafios emergentes e antecipar riscos futuros. A soberania digital de um país depende não apenas de investimentos tecnológicos, mas também de liderança política, fortalecimento institucional e inovação local. Esta seção propõe diretrizes articuladas em sete dimensões, baseadas nas melhores práticas internacionais e adaptadas ao contexto brasileiro.
Fortalecimento da governança e coordenação institucional: O primeiro eixo de ação envolve a criação de uma estratégia nacional de soberania digital, que integre os diversos atores públicos, privados e acadêmicos. Essa estratégia deve articular marcos regulatórios, planos de ação e protocolos de resposta a incidentes, garantindo clareza de competências e linhas de comando em situações de crise. Um modelo inspirador é o da União Europeia, que combina regulação, cooperação multissetorial e mecanismos de monitoramento contínuo.
Desenvolvimento de infraestrutura tecnológica soberana: A redução das dependências externas passa pelo fortalecimento da infraestrutura tecnológica local, incluindo nuvem soberana, semicondutores, data centers e redes críticas. Investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação, além de estímulos fiscais e compras públicas que privilegiem soluções nacionais, são essenciais para criar um ecossistema digital autônomo e resiliente. Essa dimensão também inclui a adoção de padrões abertos e tecnologias de código aberto, com atenção aos riscos e benefícios associados.
Uso estratégico de tecnologias emergentes: A IA, embora represente riscos, também oferece oportunidades significativas para fortalecer a resiliência cibernética. A IA pode ser empregada para detecção precoce de ameaças, análise de comportamento anômalo e automação de respostas a incidentes. As políticas públicas devem fomentar o uso responsável dessas tecnologias, estabelecendo parâmetros éticos e de governança claros.
Cooperação internacional e articulação regional: Por fim, a resiliência digital brasileira será tanto mais robusta quanto mais ancorada em redes internacionais de cooperação. A participação ativa em iniciativas regionais e globais permite ao Brasil compartilhar informações, receber alertas precoces e alinhar estratégias de resposta. O país deve buscar protagonismo nesses fóruns, aproveitando sua posição de liderança regional.
A soberania digital, ao mesmo tempo desafio e oportunidade, constitui hoje uma prioridade estratégica para o Brasil. A consolidação de políticas públicas integradas que combinem governança sólida, investimento em infraestrutura nacional e uso ético de tecnologias emergentes é fundamental para reduzir vulnerabilidades e ampliar a capacidade do Estado de proteger seus cidadãos e seus ativos críticos. O fortalecimento de competências técnicas, aliado a mecanismos regulatórios que equilibrem inovação e segurança, poderá posicionar o país de forma mais autônoma frente às disputas globais por dados, tecnologia e influência digital.
Nesse sentido, construir um ecossistema digital resiliente exige compromisso político, cooperação internacional qualificada e engajamento ativo do setor privado e da sociedade civil. Ao investir na articulação entre soberania digital e transformação tecnológica, o Brasil pode não apenas mitigar riscos associados ao ciberespaço, mas também criar condições para o desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável, pautado na defesa de direitos fundamentais e no fortalecimento da sua capacidade de decisão no ambiente digital globalizado.
*Darci de Borba é pesquisador do Think Tank da ABES, técnico de planejamento e pesquisa no Ipea, Doutorando em Administração na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.
*Luiz Felipe Vieira de Siqueira é advogado, pesquisador do Think Tank da ABES, Doutorando em Inovação & Tecnologia – PPGIT UFMG e sócio da Privacy Point. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.
Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seus autores e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software
Artigo publicado originalmente no site IT Forum: https://itforum.com.br/colunas/soberania-digital-no-brasil/
Referências
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